quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O enterro do João

Cyntia Pinheiro


Segue o corpo no caixão. Mortinho da Silva! O tal do João.
As alças de bronze reluzem ao sol forte da rua quente, meio-dia. Seis corajosos homens o carregam, solenes. Talvez sejam ali os únicos suficientemente parrudos, para aguentarem o peso de defunto misturado à quentura do inferno poeirento da rua.
Meninos alheios soltam pipa sorridentes na esquina, e deixam o brinquedo oscilando no vento, perdem um pouco da atenção observando o cortejo fúnebre, enquanto as velhas desdentadas entoam o "a nós descei divina luz", quase em forma de canto-chão.
A viúva num choro convulsivo é conduzida por um filho adulto, e o catarrentinho menor vai no colo da mais moça. O homem de branco se aproveita para enlaçar a jovem órfã sob seus braços peludos e empoeirados.
Passa um carro de som no cruzamento e ao microfone ouve-se: "galinhas gordas, galinhas sadias, dez reais, promoção do dia". Uma velha rechonchuda e de voz forte começa um canto diferente, quase geme para tirar o "avé-avé-avé-maria..." enquanto é seguida pelo sanfoneiro solitário e careca que se junta ao cortejo.
Já no cemitério o padre borrifa umas águas bentas no caixão aberto do defundo e encomenda a alma, e depois joga as águas também no povo que o assiste. A moça coloca o catarrentinho do chão e se joga sobre o pai gritando: "Levanta, pai!"
O povo se comove e chora, agora cada vez mais alto. A cantoria para. Só a gorda da vozona não chora, mas parece engasgada. O catarrentinho abraça a perna da mãe e pede pra mijar, ninguém ouve o menino. O caixão é fechado. A viúva grita e desmaia. É amparada pelo filho mais velho. O pequeno grita: "quero mijar, quero mijar", mas ninguém escuta o menino. O caixão desce à cova, a filha joga um punhado de terra e enfia a cara no resto do monte de terra que ficou no chão, descabelada e com a boca espumando grita cada vez mais alto: "Levanta, pai". Mas o defunto nem lhe dá ouvidos. A primeira pá de terra é jogada. Sobe um poeirão avermelhado, a velha gorda da voz grave espirra, a magrela da dentatura lacrimeja, e a segunda pá de terra é lançada sob protestos da filha estérica. A mãe continua desacordada. O desespero começa mais uma vez a tomar conta do lugar, todos com pena da filha desolada, mas antes que se lançasse a terceira pá de terra, um jato de água surge no nada. O catarrentinho sem pudores, põe o pinto pra fora e mija, no caixão do pai, e olha para a irmã que assiste a cena impressionada, balança a cabeça com um olharzinho inocente e fala: eu avisei.

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